terça-feira, 1 de maio de 2012

Sobre a decepção e outras coisas

A palavra decepção surgiu na Grécia antiga quando uma mulher deveras apaixonada sofreu com as peripécias do homem amado. Ele não se importava, ditava seu falso amor ao vento e erguia outras saias brancas e esvoaçantes por aí, achando graça em qualquer detalhe dourado que prendesse cabelos compridos. A tristeza da mulher era tamanha que escolher uma palavra já existente no vocabulário para expressar sua dor se mostrou uma tarefa impossível. Assim, ela criou a decepção (do grego: decepar o coração), que logo tomou grandes proporções, já que muitas pessoas se identificaram com o novo nome dado a um velho e conhecido sentimento. Ela era perspicaz, ao menos.
Mentira. Não faço a menor ideia de como nasceu a palavra decepção, mas sei que foi muito bem parida; há aflições que só ela explica. Até poderia fazer uma busca pela origem no Google, acho, mas não sou exatamente do tipo que procura respostas para o que já está em mim desde que nasci. Não preciso de um dicionário nesse caso, obrigado. Investigando bem ao fundo, a decepção é algo intuitivo que sempre esteve guardado em algum canto genético de nossos cérebros. Como uma pessoa que carrega um vírus desativado. E, de repente, um alguém externo vem cutucar feridas não tão limpas e higienizadas assim e pronto, a decepção se instala. É para aprendermos como a antissepsia é realmente importante e pode prevenir. A decepção não se cria nem se desenvolve. Apenas surge. Assim, do nada mesmo. E aumenta, e como aumenta, alimentando-se de lascas de desafeto, amargura, desdenho... qualquer coisa que venha de quem você menos espera. Quando sua dor é provocada por alguém a quem você daria sua vida, ou algo mais ou menos assim – um braço já está valendo -, pode-se dizer que você está vivendo uma decepção. E, convenhamos, não há nada mais pesado do que estar decepcionado. É pior que tristeza, porque tristeza dá e passa. Pode demorar e deixar cicatrizes, mas passa. Decepção fica. E nunca cicatriza nem clareia hematomas. Decepção é o lenço que a gente sempre carrega na bolsa ou no bolso, só que com muitos quilos a mais. Aquele tão grudado lá no fundo que dá preguiça de tirar. Outra coincidência: assim como os lenços, decepções também costumam carregar lágrimas com frequência. Não são cortes limpos e lisos como os de um cirurgião bem treinado, estão mais para cortes serrilhados e lentos de contrabando ilegal de órgãos. O que combina, porque sempre parece que a decepção está mesmo levando um grande pedaço de você. Menos o fígado, porque ela sabe que você vai precisar e muito dele depois de conhecê-la.
É diferente para cada pessoa. Eu, por exemplo, vejo decepção em cada passo que dou pelas avenidas de uma cidade. Ou ruelas menores, tanto faz. O ponto crucial vem dos passos, não do lugar. Um passado de fracassos, um presente de dúvidas e erros, um futuro sem futuro. A maneira mais fácil que já encontrei – sem querer, é claro – de viver uma decepção, foi olhando para meu próprio reflexo no espelho lá do quarto. Grande, comprido, feio, pavoroso. Entupido de arrependimentos, descrenças e medos. Rugas internas de uma mente velha que vive em um corpo jovem, gordo e flácido demais. É uma decepção em cada risquinho colorido da retina, como se eles fossem uma contagem histórica e depressiva de todas as adversidades inaceitáveis de uma vida. Eu já me decepcionei com eles, com elas, com você, com o andar da carruagem de meus dias sem graça. Já me decepcionei com tantas coisas que decorei a feição que a gente faz quando passa por isso. Mas nunca me decepcionei tanto quanto comigo mesmo. Nunca tive nojo ou raiva dos erros alheios, apenas dos meus. E jamais desprezei uma imagem que não fosse a minha. Porque não ter sabido tomar conta de mim por tanto tempo e decepar meu próprio coração não tem perdão.
Vivo a decepção todos os dias, como a mulher da Grécia antiga deve ter vivido e como suas antepassadas também. Hoje não preciso sofrer um golpe a cada dia para me sentir assim. Hoje já aprendi a me resguardar e não deixar que me tomem por um bobinho. Mas vivo a decepção de quem não sabe para onde ir ou sequer onde ficar. De quem não idealiza uma vida, de quem não difere certo e errado, de quem enxerga tudo como um grande tombo em direção ao abismo. De quem tenta, tenta e tenta uma terceira vez, sabendo que o resultado será sempre o mesmo. De quem enxerga os olhos vermelhos a cada dia, mas pinga um colírio e sorri para esconder a tristeza, porque é assim que o mundo quer. Não há nada pior do que decepcionar-se consigo mesmo. Porque você pode até dar um braço ou sua vida por alguém e esse alguém te matar de dor por algum tempo. Mas você se salva e sempre dá um jeito de se reerguer, nem que seja como em uma pintura falsa de meio sorriso. Mas quando você dá uma porrada em sua vida ou esmaga seu próprio braço, não há ninguém capaz de te puxar da escuridão. E então você apenas fecha os olhos e deseja com força a cadeira elétrica, porque é apenas isso que merece, enfim. E lembra que mora no Brasil. Não temos o direito da cadeira elétrica por aqui. E então você chora, porque a decepção não sabe ser contida como outros tantos sentimentos. Ela escorre mesmo e se acha o máximo, muito melhor do que você e sua fraqueza infinita.

Um comentário:

  1. Sendo da área de letras,fiquei seduzido com a história introdutória que o autor explica a origem da palavra "decepção".Confesso que fiquei um pouco frustrado(decepcionado rs) quando o autor revela que a explicação não é verídica(risos).Mas o argumento parece lógico,embora não tenha respaldo etimológico,mas a ideia sobre sua formação parece verdadeira.
    Acredito que a "decepção" vem do latim.

    Ao ler este texto o leitor resgata alguma decepção e passa a refletir com a leitura,pois o autor discute sobre um sentimento que é inerente e tão marcante na vida todo ser humano.
    O texto é bem construído,no entanto, acredito que o argumento poderia ser melhor se não fosse tão pessimista e com alguns exageros...

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