sábado, 20 de agosto de 2011

Chuva de granizo



Ao fundo um professor explica processos sinápticos, mas não presto atenção porque estou focada demais em manter as vísceras em seus lugares corretos. Na falta de ar-condicionado a porta da sala ficou aberta para que os alunos não derretam no calor da pequena Palotina. Não é minha culpa se me perco em devaneios olhando para fora quando deveria enxergar estritamente o quadro cheio de desenhos neuronais. Ou é. Tanto faz. O fato é que agora um alarme cerebral berra violentamente em meus sentidos só porque você passou no corredor ali fora. Não posso abrir a boca, porque sairá um barulho misturando sirene de viatura policial e gritos de “segurem aquele coração!”, enquanto o dito cujo rola para longe em sua pulsação tremendamente exagerada. Já sinto a acidez do estômago chegando à garganta, querendo ir embora também.
Todo esse caos só porque você passou. Não durou mais que três segundos. Suficiente. Três segundos são mais do que o necessário para que eu enxergue o mundo em você. Tão seguro, tão firme em seus passos, atitudes e feições. Firme 
nos músculos... ah, esses músculos. Como diabos devo prestar atenção nas tais células de Schwann quando tem um filme sobre você – e seus músculos – passando em slow motion bem na frente dos meus olhos? Está em cartaz: “Ele é o cara”, estrelando o homem dos músculos mais proporcionalmente bem desenhados. É seu último lançamento, acrescentado recentemente à filmografia em expansão. Conta a história de um cara que poderia ter o universo aos seus pés, mas preferiu ser o universo de uma só mulher. O romance de um cara que não sabia o quanto era amado, mas que sabia que, independente de quanto sentimento estivesse envolvido, mais cedo ou mais tarde teria um fim inevitável. Uma história sobre o cara dos músculos incríveis, da barba incrível, da personalidade incrível, que faria suas malas em uma data qualquer coisa menos incrível.
Bainha de mielina, blá blá blá. Você passou ali e eu fiquei babando aqui, um nível acima das cabeças pensantes que estudam os problemas da desmielinização. Estúpida, foi só uma olhadinha, coisa de uma piscadela, e deixo de ser a mulher de sempre para virar uma adolescente sonhadora, do tipo que me faz querer vomitar a bolacha de aveia do café-da-manhã. Você caminha todo lindo, o peito onde eu adoro dormir tão estufado quanto um balão de gás hélio. E eu quase deitada por cima da carteira, derrubada na postura corcunda de quem não agüenta o próprio peso. Com cara despreocupada, beliscando o lábio inferior com o polegar e o dedo médio, mania inconveniente.
Um fluxo de imagens compete por um lugar no meu cérebro. Levanto vagarosamente, ignorando os olhares curiosos, e vou de encontro a você, que me espera ancorado no batente da porta. Seguro sua nuca com delicadeza e você agarra meus cabelos, puxando-me com vontade para um beijo cuja música de fundo é o professor discorrendo, agora, sobre líquido cefalorraquidiano. O primeiro dos delírios. Fico puta quando alguém me arranca, com um cutucão, de meu pequeno sonho de olhos abertos, perguntando-me por quê o sorriso na cara por uma matéria tão chata. E de repente não estou mais puta e nem há professor cuspindo sem vontade algo sobre meninges do encéfalo. A música agora é um rock’n’roll do AC/DC e o som de nossas risadas enquanto corremos e sujamos as barras de nossas calças com o marrom da terra que cobre as ruas de Palotina. Não temos destino certo, nem objetivo, mas fluímos como duas nuvens passageiras, prontas para envolver o mundo em tempestades bonitas, porém perigosas. E isso é o segundo delírio.
Todas as mil fábulas que se formam em minha mente são melhores do que a original. Porque, na original, nada disso acontece. Nem beijo, nem sorriso, nem correria com “you shook me all night long”. Na original eu deveria estar prestando atenção na aula da faculdade, mas estava olhando para fora. E então você passou pela porta, em direção ao banheiro do bloco novo. Eu te vi e só, mais nada. O coração acelerou, tudo virou silêncio e névoa como parte da ansiedade e do suor frio que sua presença traz. Mas embora ninguém tenha percebido, um sorriso realmente tomou conta de meus lábios. Porque, originalmente, ainda que nossas tempestades atinjam tão somente duas vidas, elas não deixam de ser os espetáculos mais magníficos da natureza. Flórida, você perdeu. Fique com seus raios e trovões, porque nós temos uma bela de uma chuva de granizos para viver bem aqui.

sábado, 6 de agosto de 2011

Hortelã, Chanel e uma bola de sorvete sabor amor


Essa coisa é preta como azeviche e fria como o mármore de um balcão. Não cabe em mim direito, mas eu tento arranjar espaços extraoficiais porque cansei de ser incompleta e você encaixa tanto em meu molde que até nossos dedos e vontades têm o mesmo número. Eu quero uma mão para segurar a minha na hora de cruzar avenidas movimentadas e me pedir para ter cuidado; você quer segurar minha mão e cuidar de mim. E tudo deveria ficar bem assim, mas nasci com a parte louca falando sempre mais alto. E, então, essa coisa - que, pelo que sei, deveria ser doce como sorvete de trufas - é preta e sabe ser amarga como um remédio ruim quando quer. As vezes a coisa tem seu rosto e suas maneiras, as vezes não passa de um quadrado escuro cercado por grades em todos os lados. E eu corro com o pedaço louco fora da jaula, querendo escapar das suas garras macias porque, caso você crave suas unhas e destile seu amor direto em minha pele, não vou mais conseguir fugir. Você tapa o vazio que tanto me assusta do outro lado da cama, mas ele continua espreitando, com suas pupilas vermelhas, pela fresta do guardarroupa e eu me sinto como um vidro embaciado e fosco tentando inutilmente proteger minha vida do conhecimento público. E até consigo, mas você espia e fuça e acaba descobrindo coisas que nem eu sabia sobre fragilidades e forças.

Nós andamos pelas ruas de qualquer cidade fria desequilibrando passos sobre o meio-fio ou atravessando a rua fora da faixa de pedestres. Achamos graça nas botas verdes de uma senhora e no chão do segundo andar tremendo enquanto bebericamos o copo de chopp mais caro de nossas vidas. Lá embaixo, na praça de alimentação, a vida corre mais do que anda, o ritmo alucinado da pressa até mesmo em um domingo preguiçoso. Eu sufoco com a golfada do mundaréu de gente e quase tenho uma crise de pânico imaginando alguém lá no meio me encarando como um alvo e querendo me espancar. Olho para você buscando alguma paz e encontro mais do que isso. Calmaria, sossego e a vontade de amar sem a rapidez que sentem as pessoas enfrentando uma fila para comprar comida encaixotada. Você é como eu imaginei que o amor seria antes de vivê-lo como um verdadeiro desastre nas primeiras vezes. É o amor suave de caminhar de mãos dadas pelo shopping olhando peep toes em vitrines e rindo de tudo no meio da multidão. De parar em frente a uma agência de turismo para analisar preços de viagens de navios. É planejar abrir uma conta conjunta só para guardar dinheiro para isso e pensar em depositar junto na leva um pouco mais de nós. É o amor que eu não conhecia antes de ganhar um botão de rosa, um carrinho de coleção, uma lareira acesa, um origami de coração e lições de pôquer em uma página arrancada de caderno.

O problema é que o que é bom sempre traz apetrechos para se travestir de ruim. Botões semi-abertos, zíper emperrado, malha amarrotada. Está tudo ali, onde deveria estar, mas com algum defeito cutucando a segurança fraca. Nada fica ordeiramente em seu lugar, sentado no colo como uma criança comportada em seu vestido de chita e sapatinhos de velcro. Eu vejo em você a doçura de cubinhos de caramelo mas, por baixo, no fundo da garganta, fico doendo as formigas que arranham minha solidão. O doce vira um amargo embolotado quando eu raciocino nós dois e vejo o quanto já sou mais seu do que meu. O doce só continua doce quando quem manda é o coração. Quando eu me percebo dormindo em seus braços em uma cama para solteiros e mais confortável do que se estivesse em um colchão king size. Essa coisa pode ser preta como azeviche, sim, mas tem aroma e sabor de hortelã fresquinho e gelado, refrescando tudo com um só raminho entre um beijo e um abraço. Essa coisa, agora percebo, é o amor com seus tremendos truques e falcatruas. O mafioso sedutor. Deveria ser espalhafatosamente colorido, mas é apenas preto. Não ruim, nem clichê. Apenas clássico e elegante como Chanel. Lindo como Chanel. Machuca, as vezes, quando a consciência grita, mas uma folha de hortelã acalma e um beijo caramelo açucara tudo novamente. Essa coisa, antes tão estranha, chegou causando um vício absurdo e eu, que tanto tentei escapar, hoje me vejo pedindo todos os dias mais uma bola do seu sorvete sabor amor. Ele não derrete e deixa o potinho de sobremesa cada vez mais cheio. Até que, um dia, o estoque acabe e só reste pistache, crocante e outros sabores comuns.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A idade de ser FELIZ


Existe somente uma idade para a gente ser feliz,
somente uma época na vida de cada pessoa
em que é possível sonhar e fazer planos
e ter energia bastante para realizá-las
a despeito de todas as dificuldades e obstáculos.

Uma só idade para a gente se encantar com a vida e viver apaixonadamente
e desfrutar tudo com toda intensidade
sem medo, nem culpa de sentir prazer.

Fase dourada em que a gente pode criar
e recriar a vida,
a nossa própria imagem e semelhança
e vestir-se com todas as cores
e experimentar todos os sabores
e entregar-se a todos os amores
sem preconceito nem pudor.

Tempo de entusiasmo e coragem
em que todo o desafio é mais um convite à luta
que a gente enfrenta com toda disposição
de tentar algo NOVO, de NOVO e de NOVO,
e quantas vezes for preciso.

Essa idade tão fugaz na vida da gente
chama-se PRESENTE
e tem a duração do instante que passa.