sexta-feira, 22 de julho de 2011

Coisa de momento





Confesso que a música romântica me fez tirar a roupa mais facilmente, mesmo eu não sendo de pensar muito antes de fazer isso. As coisas que ficam fora do lugar dentro de mim, sou eu mesmo quem bagunço. Você, eu deixo bagunçar somente os cabelos e minhas quinquilharias no bidê, pra deixar registrada uma marca, uma música, um beijo e umas recomendações.
Era o trato. Não sou de meio-amores que machucam por inteiro, acho essa coisa de paixão uma monstruosidade. Esse afeto sem razão que cultivamos por alguém quase desconhecido é uma espécie de suicídio passional que dá anos de cadeia. Não gostaria de ser como aquela gente que arrasta corrente por tempo. E não sou morto por dentro, acontece que meu colorido só dura 24 horas, tal uma borboleta. Sou isso, uma espécie de heroína lepidóptera nascida pra inibir crimes passionais. Mas só à noite, o resto do tempo sou uma lagarta gosmenta.
As pessoas que se apaixonam tendem a olhar-se mais no espelho, sem enxergar sua patética e debilitante condição. Quando a coisa acontece mútua, vá lá, diversão garantida por um tempo biologicamente determinado. Os rejeitados são os brabo (kkk). Subvertem-se psicóticos, caninos, manipuladores, chantagistas, insanos, mendigos, agonizantes, verdadeiros cães de rua que aceitam um dono qualquer, suspeitos de crimes cheios de rastros.
 Se alguém já chegou lá, por gentileza, me diga se vale a pena tanto andar. Do contrário, continuarei julgando essa coisa de amor uma longa estrada de chão calorenta até uma paradisíaca praia, que leva tanto tanto tanto tempo até você alcançá-la. E quando você chega sedento por um mergulho, fez-se a noite, o mar fica revolto e gelado e suscetível e perigoso e descontrolado. Não me espanta a vida como é ela é, me incomoda a vida como ela deixa de ser, às vezes. Simples, prática, funcional, indolor. Mas são apenas convicções.
Agora essa melancolia, essa saudade, essa tristeza, essa nostalgia, não sei o nome, seja lá o que você quiser. O jeito engraçado de andar com aquelas roupas, mesmo eu não concordando com aquela sua camiseta verde, seus dedos encardidos de cigarro, sua risada às vezes meio crueis, as coisas que você diz por empolgação, completamente nu. Mesmo eu não concordando com nada de bom das coisas que já consigo enxergar em você. Você não sabe, mas meu superpoder é inventar pessoas na minha cabeça.
 Acha mesmo que vou sair na rua só pra comprar o jornal do dia e consultar sua intenção de me ligar no horóscopo? O interessado não dá desculpas, dá um jeito. Quando essa hora chegar, o dia já se foi, meu signo já aconselhou a agulha do meu disco trocar de música: dorme e acorda amanhã, num novo dia. Faz de conta que é otimista ou que esse amor não significava nada. Se a maioria acha triste a sensação de estar esquecendo uma feição, pra mim é um alívio discordar.
 Como não sei se verei seu rosto de novo, aquele papelzinho seu rabiscado no meu bidê, recomendando uma música pra ouvir, joguei no lixo antes de memorizar. Não me dou o direito de mergulhar assim tão fundo num admirável mundo que não me pertence. Mas se acaso você me procurar, não sei, pode ser, quem sabe passa hoje aqui pra devolver as coisas que são minhas - meus momentos bons.




domingo, 17 de julho de 2011

Meu querido Diário




Hoje, mais um dia perdido num mês qualquer, eu acordei com o ouvido sustenido e o rosto maldisposto pra escrever qualquer texto entupido de alegria supervalorizada com metonímias pras pessoas entenderem um cheiro, uma dor, uma mulher triste. Eu tô tão cansado dessa estrada com a lei que eu mesmo construí pra mostrar que o cotidiano tem algum sentido. Eu tô tão cansado de defender o amor que as pessoas não vivem só pra ter assunto.



Confesso - sem vergonha nenhuma da vaidade que me cabe tão bem - que a vista aqui do alto é vislumbrante. O ruim é que insisto tanto em olhar pra baixo. Minha vertigem - eufemismo pra enjôo - desse gosto denso e amargo de vitória manca tem me rendido boas e messiânicas olheiras. Quanta sabedoria vejo nesses olhos, me falta dizerem. Me peça um conselho e eu vomitarei no seu coração.




Cansei de respirar boca a boca em tantos personagens na ambição vã de dar vida e nobreza aos sentimentos que as pessoas insistem em enforcar, abortar ou chutar todos os dias. Cansei de sorrir amarelo e fingir que o mundo me importa e sufocar no osso a vontade de mandar às favas as pessoas e seus erros e suas carências e suas manipulações e suas opiniões e suas mentiras e suas idiossincrasias. Pra ser sincero e gentil.




Eu não sei como fazê-lo voltar, minha morena não tem sorte porra nenhuma, não sei por que os homens traem, como conquistar uma mulher. Eu só sei viver do jeito que dá, sem purpurina ou close de final de filme. Se você soubesse que eu brocho. Se você soubesse que cada texto é uma crítica em falsete pra cada erro meu. Se você soubesse que eu tenho uma cueca vermelha. Se você soubesse que eu acordo todo dia doendo pra trocar o refil do pulmão. Se você soubesse o quanto eu sou egoísta. Se você soubesse do pouco que me importo comigo mesmo. Se você soubesse que sou um cavalo que deixou o príncipe cair no caminho.




Eu tô tão cansado e tão sem assunto que, por um triz, não uso uma frase do Vinícius de Moraes entre linhas pra levantar geral. Eu tô tão cansado das pessoas acharem que um texto e um charuto na boca é uma grande revelação, uma prestação de contas, algo que eu não soube dizer, a epifania que vai afogar suas mágoas que já aprenderam a nadar de peito. Eu tô cansado de agradar todo mundo em troca de uma coisa que eu não sei o que é, mas não paga meu desodorante de catálogo.




Sabe, meu computador parece feito de kriptonita, minha capa vermelha anda meio murcha e me sinto incapaz de sobrevoar o céu cor-de-rosa em busca de mocinhas pra salvar. Mas faça-me um favor. Continue acreditando nas pessoas, no amor, em "caras como eu", no Vinícius de Moraes e volte aqui amanhã se não for pedir muito. Prometo fazer o mesmo.

terça-feira, 12 de julho de 2011

About me

To all those who read my blog that are part of America and Australia, I am a Brazilian boy who likes literature, largely Brazilian literature.If you want I can translate the texts for the English. Leave your comments here, that I will read them .The text of this blog talk about feelings and daily life.




Welcome and good reading!!

Das coisas que eu preciso



Eu só preciso de um abraço. Você não sabe como é ter um fichário inteiro de coisas faltando e só querer um abraço. Você não tem ideia da sensação de falta que faz não ter seus braços envolvendo meu corpo. Do sentimento de perda de abraçar o ar tentando agarrar qualquer partícula de amor. Você não conhece a tristeza de não te ter em uma noite tão fria que casacos não esquentam. Você não sabe, mas é tudo que eu sei. Essa saudade que mais parece uma música desafinada que ainda guarda um pouquinho de beleza. Essa horas nuas e incompletas, girando na roda gigante da vida sem parar para pedir novos bilhetes de entrada. Sem que eu possa descer. O tempo todo girando e girando e rodando até a cabeça urrar e cair em sono profundo, para depois acordar e continuar girando sem chegar a lugar algum.


Eu só preciso de um abraço. É como a lista de presentes de aniversário. Sempre há o item número um. Todo o resto pode ser ignorado, mas o número um a gente precisa ganhar ou tudo fica sem sentido. Meu número um é um abraço seu, mas não aguento esperar até que um sopro apague as velas do bolo e me traga você. Eu preciso agora e, se não for agora, não poderá mais ser. Porque também preciso me curar dessa necessidade que vem como passos silenciosos de visita indesejada. Batida ecoando na porta de madeira e semblante aparecendo no olho mágico. As feições tristes da saudade extrema. Preciso reabilitar meus dedos e deixar que eles aprendam a viver sem sentir a temperatura das suas costas por baixo da camiseta. Pular da velhice de já te conhecer tão bem e das suas impressões digitais para a infância do zero. Aprender tudo de novo, de outra maneira que ainda não conheço e que não pode ser medida com réguas e compassos.


Eu só preciso de um abraço. Sem fraquejos, sem insegurança, sem pudor. Tremendo um pouco, avançar um passo e me jogar em seus braços. Esconder o rosto em seu ombro para disfarçar a timidez. E ficar ali para sempre, mesmo que o nosso para sempre dure tão pouco. Não quero o abraço das pessoas que se encontram em frente ao banco ou depois de tomar um café na praça. Não serve o abraço dos camaradas, com direito a três tapinhas nas costas. Muito menos o abraço da mulher que aproveita para ver as pontas duplas da outra. Eu quero o abraço do meu peito com o seu peito, da sua nuca colada na minha boca, de ficar na ponta dos pés para te alcançar Da sua correntinha gelada batendo no meu pescoço. Preciso de um abraço mas, por ironia da vida, tem que ser o único que sei que não posso ganhar.


Eu preciso de um abraço porque você não me avisou que aquela era a última vez dos seus olhos nos meus e agora o que restou é só o ronco da fome que a saudade dá. O silêncio guilhotina o amor e eu já estou vestindo o capuz fechado e claustrofóbico do medo e da ausência. Dá para sentir o carrasco chegando, o fedor das axilas e da vontade de acabar com tudo que ainda sinto e que me move. Preciso de um abraço para evitar essa matança de mim mesma, essa chacina que acaba sempre com portas fechadas para amargar a dor. Para salvar minha capacidade de erguer a cabeça e continuar tentando, ainda que sem arriscar. Preciso querer mais do que isso e não consigo. Não dá. Não quero me perder de você, mas também não sinto mais que posso te encontrar. Já nem escrever consigo porque todos os textos só começam e nunca terminam. Eu não sei pôr fim na nossa história, nem na vontade de correr até alcançar seu colo e, agora, nem mesmo nos textos que falam sobre você. Preciso conhecer um fim. Qualquer um. Já não peço mais um final feliz. Apenas um final e um abraço.


Não vou manipular verdades só porque a vida real não basta. Não dá para viver imaginando que estou te abraçando, mas também não dá para tentar outras companhias quando só a sua serviria. Não vou me afogar na felicidade de outras pessoas. Eu quero a minha, ainda que ela leve anos para chegar. Eu prefiro que seja assim, que seja de qualquer maneira, que seja. Simplesmente, seja. A vida fica me dizendo para ficar e nunca me deixa ir, mas você já me deixou há tempo demais para que eu não perceba a diferença. Porque é assim que o amor funciona. Você ama um pouquinho e as pessoas não enxergam. Você ama demais, elas cortam o mal pela raiz. Eu entendo que tenha sido mais fácil podar qualquer plantinha verde entre nós, mas eu sinto tanto carinho por você que não posso aceitar que tudo termine em galhos secos. Ainda que você não mate minha saudade, também não mate essa coisa bonita que traz sua imagem no meu peito e nas fotos do meu celular.




Eu só preciso de algumas coisas e de tudo que preciso, você é o primeiro lugar. Preciso não acordar querendo vomitar minha vida no vaso sanitário e apertar a descarga bem forte. Conseguir dormir um sono de mais de trinta horas para esquecer. Jogar fora as ofertas de falsas alegrias que vêm em baldes mas são insuficientes para fazer os olhos brilharem. Não quero saber da influência dos climas na zootecnia quando o único clima que me influencia é o seu. Eu preciso parar de te querer com tanto afinco, porque a gente sempre quer muito e parece que quanto mais quer, menos tem e menos pode. Eu preciso que o seu silêncio termine, porque ele é a coisa mais triste da minha vida. Preciso parar de correr para ver se o computador esqueceu de fazer barulho quando você me chamou, porque nunca é isso. O silêncio é só mesmo o silêncio. Preciso aprender que, por mais velho que seja meu notebook, ele ainda não adquiriu o mal de Alzheimer. Preciso que você diga uma palavra, qualquer uma. E que me abrace mais uma vez. É tudo que eu preciso.

sábado, 9 de julho de 2011

Conquistar um garoto



"Ive Brussel", do Jorge Ben Jor. Não vai existir uma única vez que eu escute essa música e não pense nela. Ela, no caso, é a menina que me conquistou certa feita, do mesmo jeito que a Ive dominou o coração do sátiro pai do sambalanço. A moça em foco serve de parâmetro para todas que se encontram na agonia de inverter os papéis e despertar a paixão num garoto distraído.

Como disse, eu andava distraído, com a vontade ocupada por uma lá com peitos circundantemente divertidos e um shortinho de brim claro que contrastava com a coxa morena e roliça tanto quanto o ébano contrapõe o marfim nas teclas do piano. E isso entrete os hormônios e nos desvia de qualquer mulher bacana, não tem jeito. As glândulas não insubordináveis ao coração.

Eu a via como amigona, até a cumprimentava com "Hi-Fi". Na visão de seus olhos egípcios e venerantes eu era seu baldinho de praia, e sem mim vivia a vida feito pá furada. Mas topou o rali. Encasquetou que me queria e mulher quando quer um troço sai atrás com as ventas fumacentas. Lição 1: confiou no taco próprio; lição 2: fugiu do padrão; lição 3: comeu quieta. Já ouviu falar que quem come quieto, come duas vezes? Pois é. Lição 4: provou de A a Z que era única no meio do cardume de sereias decotadas da turma.

Ao longo de nossas jovens noites de sábado se aproximou, demonstrando sua atenção pelos meus diretores de cinema favoritos, as bandas extintas que eu jamais poria os olhos num palco, os arrebiques que eu admirava numa mulher. Movimentos sensuais? Poses fotogênicas? Placa de mais desejada da moçada? Nem perto. Feito uma raposa, identificou que eu precisava mesmo é de cuidado. "Não saia sem casaco", "não beba se dirigir", "deixa eu ajeitar essa gola". Eu dava aval e ficava meditabundo.

Ela já tinha os olhos roucos de tanto gritar a fim de ficar comigo. Numa noite de olhos brilhantes feito luz da lua, não se sabia quem emanava mais medo: ela ou eu. Ciente de que as tentações podem não voltar no outro dia depois das resistências, deixei "Ive Brussel" sambalançar na cabeça e vazar as veias, irrigando o coração. Avizinhei meu tom de voz na orelha enfeitada com uma flor branca e exagerada e versejei:

"Você com essa mania sensual de sentir e me olhar / Você com esse seu jeito contagiante, fiel e sutil de lutar / Não sei não, assim você acaba me conquistando / Não sei não, assim eu acabo me entregando"

Me fixou as pupilas que pareciam amuletos negros de amor enumerando os pontos em comum de nossas almas. Com o corpo inteiro voltado pra mim, embrenhou-me a mão nos cabelos posteriores e contou algo no ouvido com voz lascivamente infantil: "I wanna be yours tonight". E foi. E seguiu sendo minha tempos depois, quando eu ainda cantarolava:

"Pois está fazendo um ano e meio, amor / Que eu estive por aqui / Desconfiado, sem jeito e quase calado / Quando fui bem recebido e desejado por você / Nunca como eu poderia esquecer amor..."

Foi assim.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Eu poderia contar outras histórias, mais felizes e intensas, mas não valeriam a pena. Nós inflacionamos a felicidade. Ela está por aí, gasta, em propagandas de Campari, em outdoors de pastas de dente, em livros, filmes, melodias e novelas das seis. Nenhuma felicidade real chega aos pés dessa que criamos. A única felicidade possível, acredito, é a promessa de felicidade. Já não há mais espaço para happy ends. Só para happy beginnings. Esse é o meu. (...) Não tenho a menor ideia do que pode acontecer, mas agradeço à vida por ter me enviado esse "presente ambíguo: uma possibilidade de amor". Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome

Distopia

Foi olhando para você que eu descobri. As más línguas, esperançosas que são, dizem - embora com outras palavras - que a felicidade tarda mas não falha. O ditado fala sobre justiça, mas tanto faz; ambas não passam de sonhos distantes. Sempre compartilhei da concordância muda dos que acreditam que nem todos nasceram com a bunda virada ao destino felicidade. O tempo, que tanto insiste em querer ser o sábio burro que conduz nossas vidas, me fez chegar à conclusão de que ela é um mito e nada mais. Por muitos anos aceitei brisas mirradas de carinho, retratos maltrapilhos nas estantes do meu peito e uso cru de minha companhia. Meu amor, então, sempre inadequado. Zombaram dos meus trejeitos, manias e loucuras. Meu riso era engraçado e vergonhoso. Meu choro constrangedor. O medo era manha infantil e o silêncio uma cena. O mistério era exagerado e as piadinhas trouxas também. Calei as palavras até quase desaprender a me expressar. Tudo culpa do tempo, esse maldito que diz curar tudo, mas que nunca cursou uma faculdade de medicina. O tempo que realmente arrancou - lentamente, com uma pinça de sobrancelhas - algumas de minhas dores, mas que deixou suturas mal feitas e levou embora minha capacidade de comunicação sincera. Deixou a vontade de criar laços longe de minhas mãos e inalcançável para o coração. Foi mais fácil assim até que eu olhasse para você e descobrisse nuances cruciais de mim.

Sou bobo, sim. Digo não querendo dizer qualquer outra coisa, mas quando digo sim, é sempre querendo dizer não. Falo besteiras só para anular a relevância do que realmente penso. Trago cada sentimento como um viciado traga seu último cigarro do dia, para em alguns anos tossir os pulmões contaminados e ver a vida escoando pelos dedos. Não amo como deveria, mas juro que sei conjugar verbos, caso isso sirva. Não me entrego de verdade, mas ainda posso sorrir e fazer de conta que os pingos estão todos em seus respectivos is. Converso comigo e insisto que o trema não importa mais, mas todos os que sumiram dos meus dias deixaram buracos monstruosos demais para tapar com madeira e folhas secas, embora hoje eu não passe mesmo de uma armadilha; uma escavação funda de superfície coberta para enganar aos que se permitem. Os diacríticos fazem falta, sim, assim como as pessoas. Foi olhando para você que eu descobri que quando estou bem fica só uma coisa seca, drenada e sem nome. Se isso for a tal felicidade, falta a leveza que tanto se vangloria em cartazes subliminares mundo afora. Essa coisa empalhada pesa mais que a umidade do choro e da saudade rejeitada porque vem com os quilos do medo estourando o ponteiro da balança. Medo de recomeçar tem lá seus duzentos quilos. Medo de perder as estribeiras de vez, uns quarenta. Chuto noventa no pavor de enlouquecer antes de chegar lá. E o que mais pesa é o receio de conhecer felicidade e depois perdê-la tão rápido quanto o toque de um tambor.

Mas felicidade é utopia e eu não tenho o otimismo necessário para criar universos ideais. Meu mundo nada mais é do que uma grande e imaculada distopia. Viver de utopismo seria acreditar que falar com um analista resolve todo e qualquer problema. Algumas enfermidades não tem cura e a dependência de solidão é uma delas. Utopia seria perseverar na ideia de que um aninhar de ombros envolva e aceite também defeitos intoleráveis. Cogitar que carinho excessivo não danifica, não sufoca as flores recém colhidas, não cristaliza para depois quebrar como um lago degelando. Aliás, utopia seria achar que as melhores coisas não se quebram em novecentos pedaços que não podem ser colados ou reconstruídos. Tudo quebra. Tudo parte. Tudo trinca. Até o que parece ser constituído de puro metal. Não são permitidos erros quando a apreensão é farta - qualquer cisco no olho vira déficit de visão. Todo grito mudo perfura os tímpanos e eu torço para que não possa ouvir mais nada depois que o tinido cessar. Todo estímulo faz a medula se contorcer e querer desligar os nervos antes que respostas sejam enviadas. Todo singelo estalar de dedos no momento errado leva à destruição em massa dos afetos mais febris. E, sinceramente, utopia seria agir como se a felicidade estivesse prestes a chegar, quando a bagagem foi extraviada e eu fiquei de mãos vazias.

Não, nada dessa fantasia alucinógena e irreal convence. Nada disso pode ser. A escada é muito longa para achar que há mesmo algo esperando nos patamares mais altos. Não há nada lá em cima além do que já se conhece aqui. Não há nada vindo de carona no brilho dos seus olhos ou no pulsar perceptível da sua corrente sanguínea. Não caminha por ali amor, admiração ou crença no futuro, embora você jure que sim, sim, sim e eu insista que não, não, não. O dia é ótimo enquanto ainda estou dormindo. Eu peço para a vida só uma trégua. Uma semana de descanso desse descontentamento e do compasso sem ritmo do meu querer. Mas não há pausa onde não há paciência. A distopia é mais segura, embora segurança com louvor não exista. Foi assim que aprendi a conduzir minhas horas e passos, sem devaneios doces.

Foi olhando para você que me dei conta de que devo ser deixado antes que seja tarde. Antes que minha própria crença passe a ser boa e próspera, antes que o futuro destoe do passado e antes que o amor comece a proclamar seus versos em meu peito. Não quero a poesia do seu sorriso, porque a tragédia grega que vem depois é insuportável. Você deve ir antes que eu abandone erroneamente a distopia tão bem incrustrada em meus atos e verdades que jamais se contradizem. Ela que não me permite sonhar com inexistências que tentam provar que podem acontecer, nem deixa que eu machuque os dedos procurando cutucar com vara curta o que não deve ser posto à prova. Ela que tranca os portões e não abre nem sob juras de tortura. Ela que me mantém. Você deve ir antes que eu acredite nesse brilho secundário que vejo em seus olhos, esse que parece tentar dizer algo mais. Há uma luz colorida ali no fundo que se autodenomina Utopia, muito prazer, e que quer chutar a Distopia, coitadinha, para os confins da Cochinchina. Mas não existe paraíso, ainda que seu abraço cerceie meu vazio. Então não me mostre o que vem cheio de vontade de sorrir mostrando os dentes se for para dar um tabefe em minha boca. Não me faça entrar nesse ciclo vicioso de querer e amar e sonhar se a realidade for feita de mentiras. Não queira me levar para a utopia se não tiver pretensão de me manter por lá.