quarta-feira, 30 de maio de 2012

Coerência

Vamos ser coerentes, vamos? C-o-e-r-e-n-t-e, entende? No dicionário: ‘ligação, harmonia, conexão ou nexo entre os fatos, ou as idéias’. Na prática: viver o que se diz ser. Eu prego o perdão, não posso guardar rancor. Eu prego a espera, tenho que ser paciente. Ah, e eu prego a verdade, não posso mentir. Quem é sincero não vai agir com inconfidência. Eu prego a liberdade, tenho que libertar. Chega das incongruências nestes dias. Tem gente se dizendo fiel e sendo pérfido em segredo. Gente falando de ternura e matando em seus olhos por inveja. Gente que diz odiar falsidade e força lágrimas para aparentar uma delicadeza que não possui. Gente que quer transparência, mas tem uma vida que não pode ser descoberta. Quem é sincero não precisa dizer para ninguém. Quem é gentil não precisa convencer os outros disso. Já passou da hora de ser o que se diz ser. Ser predicado do mesmo sujeito, sabe? Vamos?

terça-feira, 22 de maio de 2012

Vazio

Um vácuo de emoções, uma vontade de nada ou nenhuma coisa, tanto faz. O amor sempre virou cinza sem que eu sentisse o calor das chamas. Uma espera pelo que vai chegar, vai chegar, vai... Vai? Não sei, mas hoje choveu. E com trovões e relâmpagos. Sim, continuo gostando deles. Acho bonito. É realmente um gosto estranho. Sabe, acordei hoje e pensei em gérberas. Depois me espantei que no jornal a notícia importante fosse quem não roubou. Deveria ser o contrário, não? Ah, o sonho dos românticos! O poeta disse para não tirar a poesia das coisas... Acho que sinto fome. Uma fome arrebatadora. E nem poderia dizer que é fome pelo doce da vida. Sempre gostei do amargo, acho que acostumei com o sabor dos dias. Fome que pede saciedade para um amor, resposta para uma dúvida e dúvidas perante minhas respostas. Fome de uma firmeza insana, de braços estáveis. O coração ronca e os lábios desenham um sorriso pequeno, pedinte. Acorda de um silêncio abrasador. E sai alucinado, cheio de aforismos. No meu sonho, ontem, o céu escuro e o sol estavam na mesma linha de visão, o mar e a montanha gelada. Sei lá, acordei crendo que tudo era possível. Acho que vai durar até o próximo sonho.

domingo, 20 de maio de 2012

Me cuidarei, pode deixar. Me cuidarei para estar inteiro amanhã de novo, para te ver de novo, te beijar de novo. Me cuidarei para me tocares com suavidade, para nunca encontrares um arranhão sobre a minha pele. E cuidarei do meu humor, cuidarei para não perder a hora, cuidarei para não me apaixonar por outro alguém, cuidarei para não te esquecer, vou me cuidar.Fica a meu encargo voltar pra você do mesmo jeito que você me viu hoje. É de minha responsabilidade não ficar triste, não deixar ninguém me magoar, não deixar que nada de ruim me aconteça porque você.. você não agüentaria. Claro que me cuido, nem precisava pedir. Te cuida, me dissera. E eu ouvi como se fosse um te amo...

Sua visita

"Eu quase nada sei, mas desconfio de muita coisa" - Guimarães Rosa

Sinto quase vontade de dizer tudo. Sempre escrevi para me manter vivo, para não deixar-me acumular, acumular e terminar por incontáveis letrinhas no chão que explodiram por não mais caberem em si. Há muito que não quero, enão posso esquecer. E há sempre o que precisa ser revelado. Mas em seu tempo próprio, em ritmo certo. Eu mesmo determino este ritmo e, por ser parecido comigo, é devagar e, mais que isso, sem pressa. Devagar por escolha, por preferência. No entanto, escolho algumas palavras para comunicar-me com quem sente comigo, com alguém que na busca por alguma coisa passou por aqui e, tenha encontrado ou não, permitiu-se desvairar sobre o amor, este tema favorito. E concordou ou discordou de minhas palavras, mas me perdoou em ambos os casos. Mas se pudesse contar-te um segredo eu diria bem baixinho que você não está preparado, ainda. É preciso mais tempo, mais cumplicidade, mais paz. Um dia poderei contar que meu maior medo é minha maior força. Contarei que ainda não encontrei o abrigo e, por isso, resguardo-me tanto. Com aquela confiança de quem se entrega, deixarei que sintas que quem está oferecendo cuidado pede proteção. Um dia aqui, enquanto estivermos assentados lendo algum livro, contando as descobertas desta vida inexplicável ou distribuindo carinho gratuito, como em um passe de mágica, segurarei sua mão e estará explícito o sinal. Então ainda baixinho contarei o tudo, que sempre traz mais, e o nada, que vai ser a distração. Enquanto acredito que coincidências não existem, acredite que seus passos, mãos, olhos e coração não te levam nem te trazem por acaso. Há em ti, como em mim, esta procura por aquela palavra desconhecida, aquele sentimento completo, aquela busca que traga um sentido definitivo. Não sei o que encontraste aqui que possa ao menos ter refrescado a parada enquanto segues tua caminhada, mas creia que se não encontrou o que procuras encontrou quem também não cessa sua busca; e se não há em mim as respostas, embora haja todas as perguntas, poderemos trocar palavras e afetos, e continuarmos, juntos ou não, com um pouco de mais esperança e beleza. Então, recebo sua visita com um sorriso de qualquer tamanho e um abraço sempre. Pode ficar perto, deita comigo a observar as estrelas, passeia de mãos dadas pelo jardim, escreve um verso sem rima, toma um banho de chuva e não faz promessas. Agora a gente procura junto.

sábado, 19 de maio de 2012

Intensões

Palavras soltas, em um pensamento preso por mim, pelos outros, por nós. Sabe, era amor demais. Chorei por amar tanto, por ter tido a oportunidade de ter tantas pessoas por quem quero tanto bem. Chorei porque elas nem devem saber a dimensão. Pensei em todos os abraços que não dei, mas poderia ter dado. Em todos os beijos omitidos pelo perigo da má interpretação. Há o que se decodificar em abraçar alguém? Em sentir carinho, afeto, ternura?! Pensei na amiga que estava ao meu lado e eu não sabia. Quantos cumprimentos carinhosos que não foram ditos. E poderiam ter sido. Penso hoje que muita gente não sabe a dimensão do que sinto, de quanto os quero bem. Algo que me traz tanto afeto. Bem que me fazem sem ter o menor conhecimento do que está acontecendo dentro de mim. Não mais mediarei o carinho que quero dar. Respeitarei minhas vontades, e destilarei tudo que puder, onde estiver, quando estiver. Espalharei pelo mundo partes de mim. Disseminarei a amabilidade que me faz chorar de tão grande e leve.E sim. Com primeiras, segundas, terceiras...todas as intenções. Todas.

Ele e o Frio


Naquele dia ele estava sozinho. Sozinho de todos. Cansado de todos que conhecia, de todos que já havia conversado. Não queria o passado e não se apegava a uma esperança de futuro. Apegava-se ao que tinha: nada além dele mesmo, e uma alegria infame e só dele, não partilhável. Não era alegria pelo que havia vivido; não era alegria pelo que estava vivendo e muito menos pelo futuro, ao qual ele não depositava a menor expectativa. Não era uma alegria por estar vivo, nem por não estar morto. Estava tão frio. E naquele dia, naquela época, era a única coisa que havia de bom. Estava frio. Não era, estava. Não exigia e ia passar. Ia passar. Vivia isso, embora não acreditasse, nem admirasse. Não interessava se ia passar, se havia passado. Não pensava nem no passado, nem no presente, nem no futuro. Detinha-se a sentir frio. Águas dos céus caíram. Fortes, impetuosas, atraentes. Como talvez ele tivesse sido um dia. Não lembrava, pois não se lembrava do passado. Ele estava sozinho. Não tinha medo, porque não esperava nada além daquele dia. Não haveria arrependimentos, porque não havia espera. Quem não espera não se decepciona. Não se lembrou dos conselhos, porque não se lembrou do passado. Não pensou no presente, porque ninguém estava presente. E não temeu o futuro porque não esperava mais por ninguém. Abriu a janela sozinho. Pulou sozinho. E deixou os pingos, a chuva, e toda aquela água infinita, que não podia controlar nem medir, molhar o corpo, a alma, a solidão, a não expectativa e entregou-se ao que havia de bom: o frio. Quando estava com o corpo molhado, a alma molhada, o frio molhado; fez resoluções – dessas que costumava concluir pra depois ter certeza de que era algo vão. Mas soube que nunca diria para ninguém. Ele era sozinho, não mais só estava. Acima de tudo ele, sozinho, soube de algo. Não entendeu, nem decidiu, nem descobriu. Ele soube que sozinho, como ele sempre fora e agora tinha certeza disso, viveria sozinho o que de bom houvesse. Sem refletir sobre o passado, que não estava mais presente. Nem sobre o presente, por estar ocupado. E muito menos sobre o futuro. Ele viveria o que havia de bom. Ele escolheria, decidiria e não sofreria por ninguém. Não seria insensível, apenas assumiria a solidão que era castiça. Era e seria assim. Ele estaria sozinho e ninguém mediria significância. E se medisse também ele não saberia por que ele estava sozinho. Entrou no quarto, fechou a janela e o frio agarrou-se a ele. O dia passou. O frio também. Ele continuou sozinho, mas desde aquele dia, com a alma encharcada. E continua vivendo sozinho o que há. Não é preciso refletir. Estando sozinho pode simplesmente viver. Respinga em outros que não entendem de onde vem aquela distância, aquela alegria não partilhável e aquela introspecção. Disso só sabem as águas, o frio que foi cúmplice e motivo e ele mesmo.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Ensaio sobre a amizade



Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem pretende um relacionamento? Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto, é claro, seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base estaria ali: na confiança, na alegria de estar junto, no respeito, na admiração. Na tranqüilidade. Em não poder imaginar a vida sem aquela pessoa. Em algo além de todos os nossos limites e desastres. Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é instinto e intuição, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. Falo daquela pessoa para quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: “Estou mal, preciso de você”. E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for. (...) A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele, mas sem o ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação nenhuma. (...) Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia demais, e ele chega confortando, chamando de “minha gatona” mesmo que a gente esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde cedo, e não viveria sem eles. (...) a vida é uma construção, também a vida afetiva. (...) amigos não nascem do nada, como frutos do acaso: são cultivados com… amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam nem luz nem espaço nem afeto. Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou irritada ou desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso. Ah! Sim. E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos agüenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como o verdadeiro amor.


Lya Luft

Passou

Foi tal qual um pequeno susto. Um tropeço e aquele momento: não se sabe o meio – se deve chorar, gritar, fazer manha ou drama. O momento se interrompe pelo abraço, que na verdade era o fim desejado por todos os meios. A tal obscena compulsão por ser amado... Pois bem, então alguém se lembra de dizer: ‘pronto, vai passar. Passou, passou’. E passa! Não sem dor, não sem durar o tempo que deveria. Mas por não duvidar que vai passar e pela pequena paciência da espera, passa. E logo. Pode ser que incomode um pouquinho quando molhar, no começo – uma forma de lembrar o que aconteceu - então vai passar. Fica uma pequena cicatriz talvez, não sem propósitos. É por ela que não se esquece. A dor passa, o momento passa e o choro também. Mas a cicatriz fica. Ainda bem. Assim, ainda dá pra brincar, para pular, para se entregar e confiar, mas não com a tolice de pensar que nada de mal pode acontecer. Pode, pode sim. E efêmera verdade: vai passar. Sempre vai, vai sim.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A magia de ser eu mesmo



No café da manhã engole a sua infinidade e caminha carregando o peso de estar preso em si mesmo. Caminha atentando os detalhes, procurando uma companhia. Não corresponde ao comum, não se encaixa. Sorri um sorriso que as pessoas não conseguem devolver, deseja um bom dia que as pessoas não conseguem entender. Está sempre quieto, tranquilo, praticamente alheio. Está tão sozinho por fora. Mas à noitinha ele tranca a porta e a magia acontece. Ele cospe a intensidade guardada e se veste dela mesma. Assiste a vida passar lá fora como se não fizesse parte dela. A vida dele está toda do lado de dentro. Tem amigos imaginários, paredes terapeutas e almofadas que conseguem abraçar. Faz poesias enquanto cozinha e consegue enxergar a cor dos sentimentos. Tem uma alma toda colorida - em tons pastéis. Ele brinca, canta, sorri, dança, desenha, chora, perdoa, fotografa, se faz companhia, se admira. Ele se liberta. Até que ele cansa (a intensidade o deixa exausto). Então ele dorme cansado de existir. Adormece com um sorrisinho de quem não está sozinho. Até a manhã seguinte, quando ele acorda.


Minha ausência das palavras deu-se por eu estar muito ocupado,escandalosamente feliz. Preciso compartilhar o que senti, e deixou em mim uma felicidade pequena, de quem ama grande. Sempre se gasta tanto tempo e tantos versos poetizando tristezas, que acho justo fazer o mesmo da alegria. Mas sem expectativas, nada aconteceu de estrambótico. Só estive perto de amores, os primeiros e os últimos, e os vi compartilhando risos e leveza. Coisa pouca mesmo, como tudo que é preciso para me fazer feliz. Devo considerar que, após exaustivas dores, é muito possível aprender também nas alegrias. E devo considerar mais ainda, que só o sentimento dememento mori me fez perceber as alegrias do presente como dádivas e não rotineiro merecimento. Se por tempos vivi uma liberdade silenciosa, agora não é mais possível esconder. O perfume de uma alma liberta invade. Indisfarçável. Senti orgulho de saber que estamos no passo certo e que são para pequenos momentos como estes que devemos continuar a caminhada - a permissão a nós mesmos da alegria sem culpa. Tenho sentido a melhor de todas as ledices, e a minha preferida, esta de completamente grato. Quem ama nesta vida – e reconhece – entende a que me refiro. Tenho dito.

Sente aqui...

Sente aqui, querido. Não há mais nada além para fazer. Agora só te resta se deixar levar sem espernear ou lamentar. Ah, doce querido, não é tão ruim assim! Somos um pouco a vida dos outros também, sempre haveremos de sentir por eles. Coisas boas, ruins, certas ou erradas. Não esqueça que vai passar. Eu, por exemplo, já quis fugir com o circo. Mas não foi possível. Já quis eliminar quem hoje amo. O contrário também. Fiz os dois. Mas ninguém poderá te ensinar o que deverás aprender. É assim. Faz do agora tua escolha. Não é impossível, digo por experiência própria. É possível seres inteiro em tudo. Sente por inteiro tua dor, só assim saberás o valor da alegria quando a roda da fortuna te trouxer. Idas e vindas, perdas e ganhos. Alternância com propósitos além do óbvio. E também impossível de explicar. É necessário sentir. Sente aqui, querido. Não há mais nada além para fazer.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Sobre a decepção e outras coisas

A palavra decepção surgiu na Grécia antiga quando uma mulher deveras apaixonada sofreu com as peripécias do homem amado. Ele não se importava, ditava seu falso amor ao vento e erguia outras saias brancas e esvoaçantes por aí, achando graça em qualquer detalhe dourado que prendesse cabelos compridos. A tristeza da mulher era tamanha que escolher uma palavra já existente no vocabulário para expressar sua dor se mostrou uma tarefa impossível. Assim, ela criou a decepção (do grego: decepar o coração), que logo tomou grandes proporções, já que muitas pessoas se identificaram com o novo nome dado a um velho e conhecido sentimento. Ela era perspicaz, ao menos.
Mentira. Não faço a menor ideia de como nasceu a palavra decepção, mas sei que foi muito bem parida; há aflições que só ela explica. Até poderia fazer uma busca pela origem no Google, acho, mas não sou exatamente do tipo que procura respostas para o que já está em mim desde que nasci. Não preciso de um dicionário nesse caso, obrigado. Investigando bem ao fundo, a decepção é algo intuitivo que sempre esteve guardado em algum canto genético de nossos cérebros. Como uma pessoa que carrega um vírus desativado. E, de repente, um alguém externo vem cutucar feridas não tão limpas e higienizadas assim e pronto, a decepção se instala. É para aprendermos como a antissepsia é realmente importante e pode prevenir. A decepção não se cria nem se desenvolve. Apenas surge. Assim, do nada mesmo. E aumenta, e como aumenta, alimentando-se de lascas de desafeto, amargura, desdenho... qualquer coisa que venha de quem você menos espera. Quando sua dor é provocada por alguém a quem você daria sua vida, ou algo mais ou menos assim – um braço já está valendo -, pode-se dizer que você está vivendo uma decepção. E, convenhamos, não há nada mais pesado do que estar decepcionado. É pior que tristeza, porque tristeza dá e passa. Pode demorar e deixar cicatrizes, mas passa. Decepção fica. E nunca cicatriza nem clareia hematomas. Decepção é o lenço que a gente sempre carrega na bolsa ou no bolso, só que com muitos quilos a mais. Aquele tão grudado lá no fundo que dá preguiça de tirar. Outra coincidência: assim como os lenços, decepções também costumam carregar lágrimas com frequência. Não são cortes limpos e lisos como os de um cirurgião bem treinado, estão mais para cortes serrilhados e lentos de contrabando ilegal de órgãos. O que combina, porque sempre parece que a decepção está mesmo levando um grande pedaço de você. Menos o fígado, porque ela sabe que você vai precisar e muito dele depois de conhecê-la.
É diferente para cada pessoa. Eu, por exemplo, vejo decepção em cada passo que dou pelas avenidas de uma cidade. Ou ruelas menores, tanto faz. O ponto crucial vem dos passos, não do lugar. Um passado de fracassos, um presente de dúvidas e erros, um futuro sem futuro. A maneira mais fácil que já encontrei – sem querer, é claro – de viver uma decepção, foi olhando para meu próprio reflexo no espelho lá do quarto. Grande, comprido, feio, pavoroso. Entupido de arrependimentos, descrenças e medos. Rugas internas de uma mente velha que vive em um corpo jovem, gordo e flácido demais. É uma decepção em cada risquinho colorido da retina, como se eles fossem uma contagem histórica e depressiva de todas as adversidades inaceitáveis de uma vida. Eu já me decepcionei com eles, com elas, com você, com o andar da carruagem de meus dias sem graça. Já me decepcionei com tantas coisas que decorei a feição que a gente faz quando passa por isso. Mas nunca me decepcionei tanto quanto comigo mesmo. Nunca tive nojo ou raiva dos erros alheios, apenas dos meus. E jamais desprezei uma imagem que não fosse a minha. Porque não ter sabido tomar conta de mim por tanto tempo e decepar meu próprio coração não tem perdão.
Vivo a decepção todos os dias, como a mulher da Grécia antiga deve ter vivido e como suas antepassadas também. Hoje não preciso sofrer um golpe a cada dia para me sentir assim. Hoje já aprendi a me resguardar e não deixar que me tomem por um bobinho. Mas vivo a decepção de quem não sabe para onde ir ou sequer onde ficar. De quem não idealiza uma vida, de quem não difere certo e errado, de quem enxerga tudo como um grande tombo em direção ao abismo. De quem tenta, tenta e tenta uma terceira vez, sabendo que o resultado será sempre o mesmo. De quem enxerga os olhos vermelhos a cada dia, mas pinga um colírio e sorri para esconder a tristeza, porque é assim que o mundo quer. Não há nada pior do que decepcionar-se consigo mesmo. Porque você pode até dar um braço ou sua vida por alguém e esse alguém te matar de dor por algum tempo. Mas você se salva e sempre dá um jeito de se reerguer, nem que seja como em uma pintura falsa de meio sorriso. Mas quando você dá uma porrada em sua vida ou esmaga seu próprio braço, não há ninguém capaz de te puxar da escuridão. E então você apenas fecha os olhos e deseja com força a cadeira elétrica, porque é apenas isso que merece, enfim. E lembra que mora no Brasil. Não temos o direito da cadeira elétrica por aqui. E então você chora, porque a decepção não sabe ser contida como outros tantos sentimentos. Ela escorre mesmo e se acha o máximo, muito melhor do que você e sua fraqueza infinita.